Um gênio intempestivo, um poeta que viveu de acordo com suas paixões.

Manuel Maria Barbosa du Bocage, nascido em Setúbal no dia 15 de setembro de 1765, é um dos mais importantes e reconhecidos poetas da literatura portuguesa. Sua obra é caracterizada por uma forte expressão emocional, rebeldia estilística e um domínio excepcional da língua. Bocage é frequentemente associado ao arcadismo, uma escola literária que privilegiava a simplicidade, a natureza e a inspiração nos modelos da antiguidade clássica, mas sua produção vai além dos preceitos desse movimento, contendo elementos pré-românticos que antecipam o florescimento do Romantismo em Portugal.

Formação e Trajetória Literária

Desde cedo, Bocage demonstrou inclinação para as letras e, após ingressar na Marinha, teve a oportunidade de conhecer diversos lugares e expandir seus horizontes intelectuais. Foi nesse período que o jovem poeta começou a escrever de forma mais sistemática, sendo influenciado tanto pelos clássicos da literatura grega e latina quanto pela poesia contemporânea europeia. A poesia de Bocage reflete seu próprio percurso de vida — desde os tempos mais joviais e aventureiros, passando pelas suas crises existenciais, até seus anos finais, marcados pelo arrependimento e pelo amadurecimento espiritual.

Bocage ingressou na Nova Arcádia, um grupo de poetas que seguiam os princípios arcádicos, adotando o pseudônimo Elmano Sadino. Contudo, sua postura irreverente e seus versos muitas vezes provocativos rapidamente o distanciaram dos colegas. Seu temperamento explosivo e sua propensão à sátira fizeram com que ele rompesse com o grupo, criticando os arcades e criando inimizades literárias que o isolariam ainda mais. Apesar disso, sua genialidade literária continuava a se destacar, e sua reputação como poeta já estava consolidada.

A Obra de Bocage

A poesia de Bocage pode ser dividida em três fases distintas: a primeira, ligada ao Arcadismo, onde prevalecem as temáticas clássicas e pastorais; a segunda, marcada por uma fase satírica e de rebeldia, em que critica a hipocrisia da sociedade e faz uso da poesia para expor seus descontentamentos pessoais; e, por fim, a terceira fase, em que adota um tom mais introspectivo e melancólico, expressando arrependimento e buscando um sentido espiritual mais profundo.

Primeira Fase: O Arcadismo

A primeira fase da poesia de Bocage está intimamente ligada aos preceitos do Arcadismo. Ele segue o estilo neoclássico, celebrando a simplicidade da vida campestre e a harmonia com a natureza. Nesse período, seus versos são equilibrados e meticulosamente trabalhados, buscando uma perfeição formal que reflete o ideal clássico de beleza. Um exemplo disso pode ser encontrado em seus sonetos dessa fase, em que a natureza é descrita de forma idílica, e o amor é representado com idealização.

Apesar de seguir as convenções do Arcadismo, Bocage já demonstrava uma inquietação emocional que não se adequava completamente aos moldes rígidos do movimento. Em seus sonetos amorosos, como o famoso “A uma jovem” (Soneto II), já se nota a intensidade emocional e a melancolia que se tornariam características dominantes de sua poesia.

Segunda Fase: Rebeldia e Sátira

A segunda fase de Bocage é marcada pela sua rebeldia contra os valores sociais, políticos e literários da época. Ele abandona o tom pastoril e assume uma postura crítica e irônica, expondo a hipocrisia da sociedade e desafiando as convenções. Esta fase coincide com seus problemas pessoais, como sua prisão pela Inquisição em 1797, acusado de práticas imorais e irreligiosas, o que aprofundou seu ressentimento contra as instituições opressoras.

Suas sátiras são ácidas e repletas de sarcasmo, como é o caso de suas críticas aos poetas da Nova Arcádia, a quem chamava de “versos estéreis” e “gente medíocre”. Esse período de crítica e provocação é marcado por um estilo menos preocupado com a forma clássica e mais focado na expressão de sentimentos e opiniões. Bocage se liberta das convenções do Arcadismo e se aproxima de um tom mais pessoal e visceral.

Seus sonetos dessa fase refletem não apenas sua revolta contra a sociedade, mas também um profundo sofrimento existencial. Um dos poemas mais conhecidos desse período, “Soneto VII”, revela sua angústia e sua sensação de abandono:

Sete anos de pastor Jacob servia
Sete anos de pastor Jacob servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
Mas não servia ao pai, servia a ela,
E a ela só por prêmio pretendia.

A transformação em seu estilo também pode ser vista no aumento do uso de um tom pessimista e cético em relação à vida, ao amor e ao futuro. Ao mesmo tempo, Bocage passa a fazer uma crítica contundente ao próprio ambiente literário, distanciando-se cada vez mais dos seus pares arcádicos.

Terceira Fase: O Arrependimento e a Reflexão

Na fase final de sua vida, Bocage passa por uma transformação notável. Seu comportamento outrora irreverente e rebelde dá lugar a uma postura mais introspectiva, fruto não apenas de suas desilusões com a vida, mas também de um crescente arrependimento por seus atos passados. Ele começa a demonstrar uma inclinação mais séria e espiritual em seus versos, refletindo sobre a brevidade da vida e a busca por redenção.

A morte e o arrependimento são temas recorrentes nessa fase, e seu estilo se torna mais contido e reflexivo. Em poemas como “À Morte”, o poeta se mostra resignado, expressando sua aceitação do destino inevitável:

Se há gente neste mundo miserável,
Que de hora em hora está desencantada
Da maligna figura, ingrata fada,
Que guia o mísero bicho instável.

Esse tom mais sombrio e filosófico revela uma faceta de Bocage que, embora distinta da rebeldia de sua juventude, é igualmente poderosa em sua sinceridade emocional.


A Personalidade de Bocage

A personalidade de Bocage é um dos aspectos que mais fascinam estudiosos e leitores até hoje. Ele é muitas vezes retratado como um gênio intempestivo, um poeta que viveu de acordo com suas paixões e que não temia confrontar o status quo. Seu comportamento irreverente, seu sarcasmo afiado e sua capacidade de escândalo são parte inseparável de sua imagem pública. A vida boêmia que levou, marcada por relações tumultuadas, dificuldades financeiras e prisão, contribuiu para essa imagem de poeta maldito, o que reforça sua lenda no imaginário literário.

Contudo, seria um erro reduzir Bocage apenas a essa figura provocadora. Ao longo de sua obra, especialmente em sua fase final, ele revela um homem em busca de redenção, de sentido para a vida e de um equilíbrio emocional que nunca encontrou plenamente. Sua obra, portanto, é um reflexo profundo de sua personalidade complexa — um homem dividido entre a exaltação do sentimento e o desejo de superação espiritual.

Legado

Bocage é, sem dúvida, um dos grandes mestres da poesia portuguesa. Sua obra influenciou gerações posteriores de poetas, incluindo aqueles do movimento romântico, que encontraram em sua expressão emocional intensa e na sua crítica social e literária um precursor dos ideais que viriam a defender. Sua contribuição para a literatura portuguesa vai além dos sonetos e poemas satíricos, ele representou uma ruptura com as convenções, abrindo caminho para uma poesia mais pessoal, livre e profundamente humana.

Hoje, no dia de seu aniversário, celebramos não apenas o poeta, mas o homem que, através de sua poesia, nos legou uma reflexão eterna sobre os dilemas da existência humana, a transitoriedade da vida e a busca incessante por significado. Bocage é, e continuará sendo, uma figura central na história da literatura portuguesa, cuja obra permanece viva, tocante e relevante até os dias atuais

Por Joaquim Pedro de Souza – in: História da Literatura, CRUZ, José Marques. ed. Melhoramentos., Domínio público, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=2371946

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

dezesseis + vinte =