Já Bocage não sou
Já Bocage não sou!... À cova escura
Meu estro vai parar desfeito em vento...
Eu aos Céus ultrajei! O meu tormento
Leve me torne sempre a terra dura.
Conheço agora já quão vã figura
Em prosa e verso fez meu louco intento.
Musa!... Tivera algum merecimento,
Se um raio da razão seguisse, pura!
Eu me arrependo; a língua quase fria
Brade em alto pregão à mocidade,
Que atrás do som fantástico corria:
"Outro Aretino fui... A santidade
Manchei...Oh!, se me creste, gente impia,
Rasga meus versos, crê na Eternidade!"
Esse soneto é uma confissão pessoal e intensa, na qual Bocage revela o tormento de sua consciência e a necessidade de purificação espiritual. Ele condena seu passado poético, refletindo sobre a vaidade e o engano de sua vida anterior, e se arrepende de ter desviado da razão e da virtude. Essa mudança de perspectiva revela uma maturidade tardia, mas sincera, em que o poeta tenta redimir sua alma e reverter o impacto negativo de sua obra na sociedade.
Manuel Maria Barbosa du Bocage
Bocage
A poesia de Bocage reflete seu próprio percurso de vida
gênio intempestivo, um poeta que viveu de acordo com suas paixões
Esses versos de Bocage fazem parte de sua fase final e expressam um profundo arrependimento e reflexão sobre sua vida e obra. O soneto reflete uma visão de autocondenação, em que o poeta, já consciente da proximidade da morte, avalia de forma crítica sua trajetória de vida e criação literária. A análise desses versos revela vários aspectos importantes tanto da obra quanto da personalidade de Bocage:
Arrependimento e Autocrítica
Bocage inicia o soneto com a declaração contundente: “Já Bocage não sou!”, indicando uma ruptura com sua antiga identidade. Esse verso demonstra que o poeta já não se identifica mais com o “Bocage” que viveu uma vida de excessos e irreverência. Ele sente que seu “estro” (inspiração poética) não tem mais valor, indo “parar desfeito em vento”. A cova escura aqui simboliza tanto a morte física quanto o fim de sua voz poética, que ele percebe como inútil ou insubstancial.
Ele expressa um remorso profundo por ter “ultrajado” os céus, ou seja, por ter desafiado a moralidade e as convenções religiosas. Esse arrependimento é ainda mais evidente na exortação ao final do poema, em que Bocage pede que seus versos sejam rasgados e que a juventude acredite na “Eternidade”, ou seja, na vida após a morte e nos valores espirituais, em contraste com os prazeres mundanos que ele outrora exaltava.
Consciência da Vaidade e do Erro
Nos versos seguintes, Bocage admite o fracasso de seu “louco intento”, ou seja, a ideia vã de alcançar algum tipo de grandeza ou glória por meio de sua poesia, tanto em “prosa” quanto em “verso”. Ele reconhece que, se tivesse seguido “um raio da razão”, sua obra teria sido mais significativa. Essa confissão de erro reflete a autocrítica severa que Bocage faz a si mesmo nos últimos anos de sua vida, à medida que tenta se reconciliar com suas ações passadas.
O verso “Musa!… Tivera algum merecimento, / Se um raio da razão seguisse, pura!” sugere que o poeta reconhece que sua inspiração (Musa) foi desordenada, guiada pelo impulso e pela emoção, sem a pureza da razão que ele agora considera como um caminho mais virtuoso.
Reflexão sobre a Moralidade
A comparação de si mesmo com “Outro Aretino” é uma referência a Pietro Aretino, um poeta e satirista italiano do século XVI conhecido por sua linguagem escandalosa e muitas vezes obscena. Bocage faz esse paralelo para reconhecer que, assim como Aretino, ele também usou sua poesia para chocar e escandalizar, em vez de elevar ou inspirar moralmente. Aqui, ele expressa remorso por ter “manchado” a santidade, provavelmente referindo-se tanto ao uso de temas licenciosos quanto à crítica que fez às instituições religiosas.
Nos versos finais, Bocage eleva sua voz para advertir os jovens que seguiam seus passos, que “atrás do som fantástico corria”. Esse “som fantástico” pode ser entendido como a busca vazia por prazeres imediatos ou pela fama literária, algo que ele agora percebe como ilusório. O uso da palavra “impia” para descrever seus leitores revela uma condenação não apenas de sua própria obra, mas também daqueles que a admiravam por seus elementos provocativos e irreverentes.
A Busca por Redenção
O apelo final para que seus versos sejam rasgados e para que os jovens “creiam na Eternidade” reflete a busca de Bocage por redenção. Ele quer que suas palavras finais sejam um aviso contra os erros que cometeu, e que as pessoas se afastem da irreligiosidade e dos excessos que ele uma vez promoveu. Esse arrependimento profundo e a necessidade de reparar os erros do passado demonstram o conflito interno do poeta, que deseja encontrar paz antes de morrer.